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terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Vidas Ligadas por um Rio


Daniel Silva, Elaine Lira, Jhonathan Pino, Roberta Batista e Thaís Magalhães, Virajovens de Alagoas.

Um mês depois das enchentes que castigaram milhares de famílias nos Estados de Pernambuco e Alagoas, deixando mais de 100 mil pessoas desabrigas e quase uma centena de mortos e desaparecidos, o grupo da vira em Alagoas foi a Murici, cidadezinha de 27 mil habitantes que fica a 51 km da capital, Maceió, e uma das mais atingidas pelas enchentes.
 Logo na entrada da cidade é possível ver um varal com milhares de roupas estendidas nas cercas das fazendas ao redor da cidade. Em frente ao varal coletivo, estão centenas de desabrigados ocupando quatro prédios que foram construídos para servir de rodoviária e galpões para futuras instalações de indústrias têxtil na cidade, e que agora servem de abrigo para essas pessoas.
Um dos desabrigados é Antônio Carlos Rufino Moreira, 16 anos. O encontramos de frente a um dos galpões com seus atípicos olhos azuis que tanto encantaram as meninas do grupo da Vira. Quando o vimos pela primeira vez, ele estava encostado num dos galpões, olhando pacientemente para aquele amontoado de gente que se ocupava nas caixas d’água, lavando suas roupas e dando banho nos menores em frente ao galpão. Dezenas de caixas d’água foram ali colocadas para suprir uma das primeiras necessidades daquelas pessoas que haviam fugido das águas do rio Mundaú.
Barulho, mau cheiro, brigas, tentativas de roubo: “Aqui acontece coisa que até Deus duvida”, nos falou a mãe de Rufino, Maria da Silva, 46. No meio de tanta bagunça, os olhos azuis de Rufino chamavam a atenção: ele parecia apenas admirado como tanta coisa havia mudado em apenas um mês na sua vida. Quando as águas do Rio Mundaú estavam subindo, no dia 18 de junho, Rufino partiu junto com os seus três irmãos com as águas pelos joelhos para a Usina São Simieão, local mais alto onde poderiam ficar mais seguros.
Sua mãe, dona Maria, não resistiu à curiosidade: preferiu ficar e passou três dias em cima da casa esperando a água baixar. “Fiquei pra ver a enchente, porque nunca tinha visto uma.” Quando desceu do telhado, a água ainda estava batendo nos seus ombros. Maria foi avisada por populares que haveria a cheia. Mas ela preferiu ficar para ver. “Porque eu era curiosa, mas agora, graças a Deus não sou mais. Eu quase morri!”, revela Maria com um certo humor negro.
Ela recebeu ajuda de um vizinho, que colocou uma escada para que Maria e mais três vizinhos ficassem em cima da casa. “Não teve socorro não. O helicóptero passava, a gente gritava, mas ninguém foi socorrido”, disse ela. Maria sobreviveu graças ao mercadinho que um amigo tinha. “Nós acabamos com a comida da venda de um amigo muito bom que tenho. Comemos farinha e tomamos refrigerante durante todos os dias,” disse ela. Quando desceram, fizeram fogo para espantar as cobras, que eram seu maior medo. “Eu sou do interior, mas tenho medo dessas coisas, meu maior medo era cobra”, revela a mãe de Rufino.
Rufino ficou três dias com os irmãos menores sem saber onde estava a mãe e esperando as águas passarem. Quando o encontramos no dia 18 de julho, um mês depois das enchentes, Rufino ainda trabalhava como uma formiguinha, tirando sozinho a lama de sua casa que chegou atingir um metro de altura. Ele disse que agora só falta limpar o telhado da casa para que voltem para o local onde moravam.  
Maria e seu filho Rufino perderam tudo da e agora vivem com doações que chegam. Eles sobrevivem agora num ambiente coletivo, em que o barulho é constante, o mau cheiro toma conta do lugar e com apenas uma cama, um colchão e a geladeira, única coisa que conseguiram salvar. Mas Maria revela que não quer ficar assim por muito tempo: “Não queria nada, nem roupa, nem nada. Porque se eu vivia com pouco antes da cheia, como é que agora eu quero viver com muito? Eu só queria o meu sossego, sair daqui e ir pra minha casa: Isso não é vida de ninguém não” diz Maria chorando. 

Recomeço
Enquanto estávamos fotografando o centro da cidade de Murici, que mais parecia um cenário daqueles que vemos em filmes de guerra, encontramos Maria de Lurdes de Deus Ferreira, 17 anos, sua mãe Maria José, 49 anos e os filhos de Lurdes, Derick Luan, 2 anos, e Dalisson Werick de apenas 10 meses. Eles estavam indo para casa, na rua da Floresta – a mesma onde o Rufino morava – levando num carrinho de mão algumas roupas velhas distribuídas pelo exército.
A casa, ainda úmida, e com marcas de água até o teto, estava cheia de roupas velhas espalhadas por todos os cômodos. Apesar do número grande de roupas, estas não os serviam, eram muito grandes e as crianças ainda ficavam quase nuas e descalças devido a falta de donativos voltados para as crianças. Como o colchão ainda estava molhado e o chão, tanto da casa, como da rua, cheio de lama, todos eles pegaram frieiras, e os dois filhos de Lurdes ficaram seriamente doentes. O quintal da casa, apesar de todo o trabalho no último mês ainda está cheio de água e lama.
Eles souberam da cheia um pouco antes, às 16h da sexta-feira, quando um homem desconhecido passou avisando: “quem tiver criança vá embora daqui, vai chegar muita água daqui a pouco. Vem muita coisa descendo aí.” Mas elas acharam que seria uma experiência como as outras, em que a água não subiu mais que a altura dos joelhos.
Maria Patrícia, 20 anos, irmã de Lurdes e mãe de Saniele Lauane, que não tinha sequer 2 meses de vida, não quis saber de esperar,  “estava chovendo, botei a pequeninha no braço, peguei a sombrinha e fui. Meus vizinhos ficaram três dias em cima das casas. Algumas casas caíram”, disse Patrícia.
Lurdes e Patrícia que estavam doentes havia vários dias e não estavam se alimentando direito, ficaram com bastante medo. Lurdes levou primeiro um dos filhos e depois voltou para levar o outro, já Patrícia levou logo a bebê. Elas foram para a casa do irmão, que fica na Usina São Simeão “porque é longe do rio”. Quando elas saíram, pouco mais de 17h, a água já estava próximo ao joelho. “A água já tava na perna”, diz Lurdes mostrando a perna e a altura da água na parede.
A mãe de Lurdes ficou tentando salvar os móveis e só foi embora pra a Usina
às 18h com mais pessoas da família. Elas disseram que à 1h da madrugada outras pessoas na chegaram Usina dizendo que faltava um metro para a água cobrir as casas e que a situação estava horrível, com coisas descendo rio abaixo com força da água. Sua cachorra Cristina, não se sabe com a ajuda de quem, passou sete dias em cima da casa, comendo restos deixados pelas águas.
Com três dias matriarca da família tentou voltar para ver a situação da casa.”O medo é que ela estivesse caído”, diz Maria José. Eles perderam coisas que ainda estavam pagando com sufoco como o armário da cozinha. Também perderam o berço do bebê que haviam comprado há menos de um mês. “Até a caixa d’água que estava em cima da casa foi levada pela água,” lamenta Maria. Os adultos voltaram para casa com 15 dias e as crianças só voltaram quando estava um pouco mais limpo. “Se é possível chamar de limpo”, fala Lurdes.
A família de Lurdes não recebeu nenhuma doação para a casa, como colchão. Mas toda semana eles recebem roupas e uma cesta básica por semana. Eles têm um quarto cheio de roupas, mas a maioria não as serve. As roupas são distribuídas sem seleção e na casa há crianças e jovens: mas eles recebem roupas apenas para adultos mais velhos, só dona Maria mãe as aproveita. Eles acabam passando para outras pessoas.

Vida provisória
Longe do rio estava família de Carla Taíse da Silva, de apenas 12 anos. Ela, seus pais, Carlos Henrique, 33 anos, e Maria José da Conceição, 28 anos além de seus irmãos Claudemir Henrique, 11 anos, Charles Henrique, 9 anos, Cleberson Eduardo 4 anos e Carlos Eduardo de 3 anos, estavam num complexo de barracas de lona montadas pelo Corpo de Bombeiros.
Na barraca deles tinha roupas quatro colchões de solteiro que eles ganharam. Eles também recebem comida três vezes ao dia, mas não sabem quando vão sair das barracas. “Ninguém chegou para dizer ainda quanto tempos vamos passar aqui”, dissea Maria, mãe da Carla.
Eles saíram de casa quando a água estava no joelho, mas não deu tempo de tirar nada. “Tudo foi muito rápido”. Mas mesmo assim, Maria José disse que não queria sair de casa na sexta. “A gente perdeu a casa da gente, não queria sair porque ficamos desabrigados, com tanta criança. Eu não pensava em nada, não pensava no perigo, não dá pra pensar em nada,” disse Maria José.
Eles disseram  que durante a noite é tranqüilo ficar na barraca, mas que durante o dia, devido ao calor, não há condições disso, “a quentura é demais”, dizem Maria e Carla. Apesar de existe torneiras perto do local, Maria José ainda não sabe ainda como vai fazer para lavar roupa, “aqui é ruim pra lavar pano. Também é ruim pra tomar banho; não tem onde separar. Quando a gente vai tomar banho, o pessoal fica olhando, aí tem que tomar banho de roupa,” disse Carla com os olhos negros e confusos.
Todos os adolescentes com quem conversamos, sejam aqueles de olhos azuis de paciência de uma formiga que trabalha diariamente como os de Rufino, sejam os olhos de mel de medo de Lurdes, sejam os olhos negros e confusos de Carla, estudavam nos mesmos colégio. Não se conheciam, mas tinham o mesmo destino naquela sexta-feira, 18 de junho. Foram expulsos de suas casas com as águas do Rio Mundaú batendo nos joelhos; esperaram durantes três dias as águas baixarem enquanto estavam ilhados e agora estão apenas esperando se alguma ajuda divina ou humana é capaz de tirá-los da bagunça, da sujeira e dos olhos curiosos daqueles que se aproveitam do momento para ver seus corpos enquanto tomam banho.



*** Matéria publicada na Revista Viração Nº64, Agosto de 2010. também disponível para dowload.

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